Angelina Jolie e as marionetes
Celebridades
são notícia por sua própria condição de produto da indústria do entretenimento.
Cumprem competentemente o script, lançam moda, divulgam padrões de beleza
frequentemente inalcançáveis pelo comum dos mortais, eventualmente se tornam
ícones de alguma causa humanitária. Mas também podem servir a outros fins, não
imediatamente visíveis.
A
decisão de Angelina Jolie de retirar ambos os seios para prevenir um possível
câncer de mama, anunciada em artigo no New York Times (terça, 14/5 – original
aqui e a tradução, aqui), teve a previsível repercussão pela radicalidade da
atitude, provocou entusiasmados elogios à “coragem” e “ousadia” da atriz e
suscitou o inevitável debate sobre a utilidade, o alcance e a viabilidade da
aplicação de testes genéticos com esse fim, além das providências mais
adequadas no caso da confirmação de um diagnóstico preocupante.
A Folha
de S. Paulo, por exemplo, enfatizou a polêmica em torno do tema, apresentou
hipóteses de tratamentos menos radicais e, em editorial (16/5), lembrou que o
avanço da medicina tende a proporcionar o aumento das possibilidades de que se
conheça a doença, mas não a cura: “Cada um terá de escolher de quanta
informação necessita”. O que, especialmente nos dias de hoje, não é bem uma
escolha, uma vez que estamos bombardeados por “informação” – verdadeira ou não,
quem saberá? – por todos os lados.
A
sombra da dúvida
O
problema é que, para o público em geral, importam menos os argumentos dos
especialistas consultados – eles mesmos sujeitos a controvérsias – do que o
exemplo da celebridade. Que, embora viva da publicidade de sua imagem, poderia
preservar algo de sua intimidade. Jolie, entretanto, preferiu se expor:
“Decidi
não deixar minha história em segredo porque há muitas mulheres que podem estar
vivendo sob a ameaça de um câncer sem saber disso. Espero que também elas
possam fazer o teste genético”.
É uma
esperança remota, considerando que a própria atriz, no parágrafo anterior,
reconhecia que o custo desse teste (de R$ 3 mil a R$ 9 mil no Brasil, segundo
reportagem de O Globo, 15/4) “continua sendo um obstáculo para muitas
mulheres”.
Se a
maioria das pessoas não pode pagar por isso, e se esse exame – como ocorre no
Brasil – não é oferecido pelo serviço público de saúde, que consequências
poderá ter o exemplo da atriz, a não ser aumentar a angústia de quem comece a
considerar esse teste ao mesmo tempo uma necessidade e uma impossibilidade?
Quantas mulheres não passarão a viver com mais um fantasma a assombrar-lhe os
dias?
É claro
que a atitude de Jolie permite também algum comentário sobre a tentativa de
predizer e prevenir o futuro, como se eliminar a possibilidade de uma doença
fatal nos fornecesse algum consolo quanto às inúmeras outras hipóteses de morte
pelas mais distintas causas e nos desse alguma sensação de controle sobre
nossas vidas. Como se fosse possível, em suma, abolir o acaso.
Os
interesses em jogo
Nenhuma
dessas considerações é desprezível, mas talvez seja mais relevante apontar os
interesses por trás da decisão da atriz, mesmo que ela própria possa
ignorá-los, embora essa (in)consciência importe menos do que a consequência de
suas ações. Tais interesses apareceram dispersamente no meio do noticiário e
foram sintetizados pela antropóloga Debora Diniz em artigo no Estado de S. Paulo
(18/5 ):
“O
teste sanguíneo para a identificação do gene defeituoso de Angelina [BRCA1]
custa US$ 4 mil nos EUA. É produzido por uma única empresa, a mesma que busca
patentear o sequenciamento genético na Suprema Corte americana. No Brasil, não
está disponível na rede pública de saúde por duas razões. A primeira é que a
genética clínica ainda não foi seriamente implementada como política pública do
SUS. A segunda, e mais importante, é o custo exorbitante do exame, dado o
controle econômico da patente e do sequenciamento do gene por uma única
empresa. (...)
“Angelina
lançou-se como ativista de mais uma causa: a do teste preditivo para o câncer
de mama e da mastectomia preventiva. Suas boas intenções humanitárias
favoreceram o crescente mercado genético. Em poucos dias, as ações comerciais
da Myriad Genetics, a única que controla o teste preditivo para o BRCA1,
cresceram nas bolsas de valores.”
Marionetes
às vezes representam tão bem que parecem ter autonomia. Por isso mesmo é
preciso estar atento para quem está por trás da cena, especialmente quando
lidamos com temas tão delicados quanto os ligados à saúde, e às cifras
milionárias movimentadas por quem a trata como mercadoria.
Por
Sylvia Debossan Moretzsohn, no Observatório da Imprensa
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